terça-feira, 28 de setembro de 2010

[Passeio, Hilda Hilst.]



1

Não haverá um equívoco em tudo isso?

O que será em verdade transparência

Se a matéria que vê, é opacidade?

Nesta manhã sou e não sou minha paisagem

Terra e claridade se confundem

E o que me vê

Não sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidas

Não quis meu canto em leveza e brando

Mas para o vosso ouvido o verso breve

Persistirá cantando.

Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.

Serão leves as límpidas paredes

Onde descansareis vosso caminho?

Terra, tua leveza em minha mão.

Um aroma te suspende e vens a mim

Numas manhãs à procura de águas.

E ainda revestida de vaidades, te sei.

Eu mesma, sendo argila escolhida

Revesti de sombra a minha verdade.

2

Lenta será minha voz e sua longa canção.

Lentamente se adensam essas águas

Porque um todo de terra em mim se alarga.

E de constância e singeleza tanta,

Meus mortos hoje sobre um chão de linhos

Por algum tempo guardarão meu ritmo

Nos ouvidos da terra. De granito.

Pude aclarar a sombras nos oiteiros

E aquecer num sopro o vento da tarde.

Mas não vereis ainda meus prodígios

Porque haverá lideiras neste outono

E vossos olhos estarão por lá

Desocupados do sono, extremados

Para uma só visão num só caminho.

3

Quisera descansar as mãos

Como se houvesse outro destino em mim.

E castigar as falas, alimárias

Vindas de um outro mundo que não sei.

Fazê-las repetir suas longas árias

Até que a morte silencie as mandíbulas

Claras.

4

Caminho. E a verdade

É que vejo alguns portais

E entre as grades uns pássaros a leste.

Não sabem de seus passos os meus pés

Nem de mim mesma sei

Mas tantas timidizes se esvaíram

E este meu corpo agora não as tem.

E atravessando os mármores e os muros

Como se fossem mais muros de vento,

Passeio nos jazigos

E um cordeiro de pedra eu apascento.

5

Também nos claros, na manhã mais plena,

A retina ferida nesse vôo que passa além do verde,

É sempre a morte o sopro de um poema.

Entre uma pausa e outra ela ressurge

Ilharga de sol. Ah, diante do efêmero

Hei de cantar mais alto, sem o freio

De uns cantares longínquos, assustados.

6

As aves eram brancas e corriam na brancura das lajes.

As aves eram tantas e sabiam do seu corpo de ave.

Esguias e vorazes consumiam

Os corpos que eram aves menos ágeis.

E as garras assombradas dividiam

As espessuras ínfimas da carne.

Na plumagem umas gotas de sangue

Dos corpos devorados se entrevia.

Mas da vida e do sangue não sabiam

As aves que eram tantas sobre as lajes.

O ritual sincopado das gargantas

Tinha o ruído oco de umas águas

Deitadas bem de leve em algum cântaro.

Todo o espaço se enchia desse canto

E atraía umas aves, outras tantas.

A face do meu Deus iluminou-se.

E sendo Um só, é múltiplo Seu rosto.

É uno em seus opostos, água e fogo

Têm a mesma matéria noutro rosto.

Alegrou-Se meu Deus.

Dessa morte que é vida, Se contenta.

7

O Deus de que vos falo

Não é um Deus de afagos.

É mudo. Está só. E sabe

Da grandeza do homem

(Da vileza também)

E no tempo contempla

O ser que assim se fez.

É difícil ser Deus

As coisas O comovem.

Mas não da comoção

Que vos é familiar:

Essa que vos inunda os olhos

Quando o canto da infância

Se refaz.

A comoção divina

Não tem nome.

O nascimento, a morte

O martírio do herói

Vossas crianças claras

Sob a laje,

Vossas mães

No vazio das horas.

E podereis amá-lo

Se eu vos disser serena

Sem cuidados,

Que a comoção divina

Contemplando se faz?

8

Vereis um outro tempo estranho ao vosso.

Tempo presente mas sempre um tempo só,

Onipresente.

A dimensão das ilhas eu não sei.

Será como pensardes ou como é

Vossa própria e secreta dimensão.

Às vezes pareciam infinitas

De larguras extremas e tão longas

Que o olhar desistia do horizonte

E sondava: ervas, água

Minúcias onde o tato se alegrava

Insetos, transparências delicadas

Tentando o vôo quase sempre incerto.

O peito era maior que o céu aberto.

Parávamos. E sabeis

Que o que contenta mais o peito inquieto

É olhar ao redor como quem vê

E silenciar também como quem ama.

Éramos muitos? Ah, sim

Eram muitos em mim.

O perigo maior de conviver era o perigo de todos.

Nosso Deus era um Todo inalterável, mudo

E mesmo assim mantido. Nosso pranto

Continuadamente sem ouvido

Porque não é missão de divindade

Testemunharo pranto e o regozijo.

O que esperais de um Deus?

Ele espera dos homens que O mantenham vivo.

E os verdes, os azuis, o chumbo delicado

De umas tardes, a pureza das aves

Os peixes de verniz

Na abertura mais funda de umas águas.

(...)

[Exercícios para uma trajetória poética do ser (1963-1966)][in Poesia: 1959-1979/ Hilda Hilst. - São Paulo: Quíron; (Brasília): INL, 1980.]

Um comentário:

Lutto T. Nebroso disse...

A poesia deve ter morrido. Mas não me avisem.