quinta-feira, 30 de setembro de 2010

[O melhor disco solo de um beatle.]



"All Things Must Pass"

(George Harrison, 1970)

Para download gratuito em:

http://www.megaupload.com/?d=OMMGD8Y2

terça-feira, 28 de setembro de 2010

[Passeio, Hilda Hilst.]



1

Não haverá um equívoco em tudo isso?

O que será em verdade transparência

Se a matéria que vê, é opacidade?

Nesta manhã sou e não sou minha paisagem

Terra e claridade se confundem

E o que me vê

Não sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidas

Não quis meu canto em leveza e brando

Mas para o vosso ouvido o verso breve

Persistirá cantando.

Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.

Serão leves as límpidas paredes

Onde descansareis vosso caminho?

Terra, tua leveza em minha mão.

Um aroma te suspende e vens a mim

Numas manhãs à procura de águas.

E ainda revestida de vaidades, te sei.

Eu mesma, sendo argila escolhida

Revesti de sombra a minha verdade.

2

Lenta será minha voz e sua longa canção.

Lentamente se adensam essas águas

Porque um todo de terra em mim se alarga.

E de constância e singeleza tanta,

Meus mortos hoje sobre um chão de linhos

Por algum tempo guardarão meu ritmo

Nos ouvidos da terra. De granito.

Pude aclarar a sombras nos oiteiros

E aquecer num sopro o vento da tarde.

Mas não vereis ainda meus prodígios

Porque haverá lideiras neste outono

E vossos olhos estarão por lá

Desocupados do sono, extremados

Para uma só visão num só caminho.

3

Quisera descansar as mãos

Como se houvesse outro destino em mim.

E castigar as falas, alimárias

Vindas de um outro mundo que não sei.

Fazê-las repetir suas longas árias

Até que a morte silencie as mandíbulas

Claras.

4

Caminho. E a verdade

É que vejo alguns portais

E entre as grades uns pássaros a leste.

Não sabem de seus passos os meus pés

Nem de mim mesma sei

Mas tantas timidizes se esvaíram

E este meu corpo agora não as tem.

E atravessando os mármores e os muros

Como se fossem mais muros de vento,

Passeio nos jazigos

E um cordeiro de pedra eu apascento.

5

Também nos claros, na manhã mais plena,

A retina ferida nesse vôo que passa além do verde,

É sempre a morte o sopro de um poema.

Entre uma pausa e outra ela ressurge

Ilharga de sol. Ah, diante do efêmero

Hei de cantar mais alto, sem o freio

De uns cantares longínquos, assustados.

6

As aves eram brancas e corriam na brancura das lajes.

As aves eram tantas e sabiam do seu corpo de ave.

Esguias e vorazes consumiam

Os corpos que eram aves menos ágeis.

E as garras assombradas dividiam

As espessuras ínfimas da carne.

Na plumagem umas gotas de sangue

Dos corpos devorados se entrevia.

Mas da vida e do sangue não sabiam

As aves que eram tantas sobre as lajes.

O ritual sincopado das gargantas

Tinha o ruído oco de umas águas

Deitadas bem de leve em algum cântaro.

Todo o espaço se enchia desse canto

E atraía umas aves, outras tantas.

A face do meu Deus iluminou-se.

E sendo Um só, é múltiplo Seu rosto.

É uno em seus opostos, água e fogo

Têm a mesma matéria noutro rosto.

Alegrou-Se meu Deus.

Dessa morte que é vida, Se contenta.

7

O Deus de que vos falo

Não é um Deus de afagos.

É mudo. Está só. E sabe

Da grandeza do homem

(Da vileza também)

E no tempo contempla

O ser que assim se fez.

É difícil ser Deus

As coisas O comovem.

Mas não da comoção

Que vos é familiar:

Essa que vos inunda os olhos

Quando o canto da infância

Se refaz.

A comoção divina

Não tem nome.

O nascimento, a morte

O martírio do herói

Vossas crianças claras

Sob a laje,

Vossas mães

No vazio das horas.

E podereis amá-lo

Se eu vos disser serena

Sem cuidados,

Que a comoção divina

Contemplando se faz?

8

Vereis um outro tempo estranho ao vosso.

Tempo presente mas sempre um tempo só,

Onipresente.

A dimensão das ilhas eu não sei.

Será como pensardes ou como é

Vossa própria e secreta dimensão.

Às vezes pareciam infinitas

De larguras extremas e tão longas

Que o olhar desistia do horizonte

E sondava: ervas, água

Minúcias onde o tato se alegrava

Insetos, transparências delicadas

Tentando o vôo quase sempre incerto.

O peito era maior que o céu aberto.

Parávamos. E sabeis

Que o que contenta mais o peito inquieto

É olhar ao redor como quem vê

E silenciar também como quem ama.

Éramos muitos? Ah, sim

Eram muitos em mim.

O perigo maior de conviver era o perigo de todos.

Nosso Deus era um Todo inalterável, mudo

E mesmo assim mantido. Nosso pranto

Continuadamente sem ouvido

Porque não é missão de divindade

Testemunharo pranto e o regozijo.

O que esperais de um Deus?

Ele espera dos homens que O mantenham vivo.

E os verdes, os azuis, o chumbo delicado

De umas tardes, a pureza das aves

Os peixes de verniz

Na abertura mais funda de umas águas.

(...)

[Exercícios para uma trajetória poética do ser (1963-1966)][in Poesia: 1959-1979/ Hilda Hilst. - São Paulo: Quíron; (Brasília): INL, 1980.]

domingo, 26 de setembro de 2010

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

[Ação entre amigos.]




Dois textos de Ana Melo, a Anamarela, para apreciações e comentários. Visitem também o blog da moça em http://anamarela.blogspot.com/. Mandem vocês também seus trabalhos para o (sofrível) Guerrilha. Tudo será publicado, sem cortes, perfurações ou suturas. Enjoy the ride!

(1)

Nem dormiu aquela noite. O sono debandou sem cumprimentar e definitivamente não voltou. Vira de lado, se ajeita, fecha os olhos, ouve barulhos, liga a TV, desliga, conta carneiros, assenta. Precisa chegar logo a manhã, assim não teria mais a responsabilidade de dormir.

Na rodoviária imunda o ônibus que não chega e a ansiedade da noite é ainda maior. Os segundos são minutos.

Abre a porta do ônibus e está ali um estranho tão íntimo e familiar. Chega perto, nenhum dos dois sabe o que fazer, o que falar. Se percebe apenas o desvio do olhar de cada um. Esperaram tanto tempo, e agora, o que fazer?

- E aí, que quer fazer? Onde vamos?

-Onde o vento levar.

Beberam goles e goles, beberam olhares, beberam jeitos e trejeitos, beberam palavras, muitas palavras e, por fim, embebedaram as suas bocas com salivas. Outro cenário, calor, suor, fome, rubor, pele, unhas, cabelos, brincos, cores, pudores, mãos, pernas entrelaçadas, bocas e salivas.

Calma, sossego, tudo quieto.

E o mesmo ônibus que o trouxe pra ela, o levou de volta.

Continuou sem dormir. A ansiedade de uma noite virou a saudade de outras.


(2)

Bar lotado. Sombra verde e batom vermelho-sangue destacam-se num rosto moreno. Os peitos quase saltavam para fora da pequena blusa verde dois números menor , o chamarisco para o sexo oposto. Toda aquela produção mereceria um ou mais troféus.

Objetivo: curtir a noite. Seria, se não pudéssemos observar de longe uma carência imperativa. Blusa verde e duas amigas sentadas à mesa, a primeira num pequeno vestido azul de feira de bairro belorizontino . A segunda, uma loira de postura arqueada que tentava esconder a baixa autoestima, os segredos e as intempéries da vida.
A moça de verde não se contentou em ver uma roda de homens na mesa à frente. Foi à caça. Levantou uma vez e passou por eles, sem sucesso. Voltou, empinou a bunda e nada! Eles, mais preocupados cosigo mesmos e com o campeonato de futebol que passava na TV não a viram passar. Mulher provocativa. Senta, levanta, passa por eles. Nada! Resolve levantar mais um vez, mas dessa não podia errar o tiro. Foi até a mesa dos homens e, de súbito, um se levanta e vai à mesa das mulheres. Os amigos o deixam constrangido, a de vestido azul se atrapalha com a visita inesperada e deixa o telefone cair no chão. Logo se faz uma corrente quase divina de ambos os lados de amigos para que os dois se beijem. A blusa verde atinge um dos objetivos.
Dois outros, estilo cowboy entram no bar, altos, fortes logo fuzilados pelos olhos contornados de sombra verde. Ainda tinha que arrumar para sua amiga e a si própria. Levanta, puxa a calça jeans, empina a bunda num exercício lordósico de dar inveja e volta à mesa dos homens. A fonte esgotou e só um teria sucumbido à sua atitude desesperada de fazer sua amiga feliz por aquela noite.
Blusa verde vira a sua cadeira e lembra-se que eram dois cowboys. Estava salva. Ela e sua amiga iriam colocar na estante, mais um troféu da noite de sábado.

(Ana Melo)

domingo, 19 de setembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

terça-feira, 14 de setembro de 2010

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

[João.]


Uma vida em linha reta, com prazo, tarefas inúteis, hora e apatia, parece ser a especialidade do mundo. Tudo bem servido nos vagões que nos levam de um lado para outro, mas quase nunca ao destino que sonhamos quando crianças. Mas há os descarrilamentos e neles as pequenas alegrias. Porque algumas peças antigas se desgastam, para o nosso bem. Ali, no que comumente chamam de acidente, ou erro, existe vida. Felizes os que se contentam com as pequenas coisas. E não estou falando dos que sorriem para os anões, como na antiga piada. Bem, eu só queria dizer, antes de divagar, que, ao cuidar dos pés do meu filho, um centroavante de 7 anos, eu tive uma revelação. Quando escaldava, limpava e aplicava pomada naquelas pequenas maravilhas que marcam gols, eu pensei em como somos, pai e filho, parecidos, física e emocionalmente. Pensei, como os pais constumam pensar, em como esse rapazinho é a extensão do que sou, a minha continuação, para o bem ou para o mal. Sempre rimos das mesmas coisas e nossos interesses estão cada vez mais estreitos. Sem falar de uma certa timidez que corre no nosso sangue, que mais tarde, espero, ele vai usar como charme. Enquanto você caminhar pelo mundo, João Pedro, não importa o tempo, seus pés serão os meus também. Cada passo, cada drible, jogada ou gol (acidental ou não), terão um pouco de mim. Eu o amo porque o entendo como criança, sem nunca subestimar a sua capacidade e força. Meu veloz e audaz jogador, para sempre. Eu beijo os seus pés, "na lei da humildade, conforme Jesus Cristo." Essa é a minha linha reta.

[Linda, uma história horrível.]



Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.

— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.

Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.

— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa.

Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.

— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.

— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.

— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.

Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:

— Uns noventa e cinco, então.

Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:

— O quê?

— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.

Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?

— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.

— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café.

—A senhora não devia. Café tira o sono.

Ela sacudiu os ombros:

— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.

A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.

— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.

Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.

— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.

— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.

Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:

— Me dá o fogo.

Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:

— Bonito, o isqueiro.

— É francês.

— Que é isso que tem dentro?

— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.

Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.

— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.

Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.

— Vim, mãe. Deu saudade.

Riso rouco:

— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?

Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:

— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.

Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.

— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.

— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?

Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.

— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?

Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.

— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.

Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.

— Deixa eu te ver melhor — pediu.

Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.

— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.

— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.

— Perdeu cabelo, meu filho.

— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?

— Cigarro, mãe. Poluição.

Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.

— Mas vai tudo bem?

— Tudo, mãe.

— Trabalho?

Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:

— Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.

— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?

A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:

— Coitada. Mais esclerosada do que eu.

— A senhora não está esclerosada.

— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.

— A Cândida morreu, mãe.

Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.

— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?

— Comi no avião.

Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.

— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?

— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.

— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.

Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.

— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.

Ela voltou a olhar o teto:

— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.

— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?

— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.

— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.

— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.

— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.

Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.

— E por quê?

— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.

Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:

— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.

Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.

— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.

Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.

Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.

— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.

(Caio Fernando Abreu)

[Frase edificante do dia.]

[A vida até parece uma festa.]

La Fete (HD - 2010) from Malcolm Sutherland on Vimeo.

[Você tem medo do escuro?]

Umbra (HD - 2010) from Malcolm Sutherland on Vimeo.

sábado, 4 de setembro de 2010