segunda-feira, 23 de novembro de 2009

[Um texto.]

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Os interesses do escritor e do leitor jamais são os mesmos e se ocasionalmente chegam a coincidir, trata-se de mero acaso.
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No que tange ao desempenho do escritor, a maioria dos leitores adota critérios diferenciados: o leitor pode trair o escritor quanto desejar, mas o escritor não pode jamais, em hipótese alguma, trair o leitor.
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Ler é traduzir, pois a experiência de cada pessoa com o texto é exclusiva. Um mau leitor é como um mau tradutor: interpreta literalmente quando deveria parafrasear, e adota a paráfrase quando deveria interpretar literalmente. Para aprendermos a ler de uma forma mais crítica, a erudição, embora bastante útil é menos importante que o instinto; há grandes eruditos que, como tradutores, mostram-se fracos.
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Com frequência enriquecemos com a leitura de um livro percorrendo caminhos diferentes daqueles que o autor previu, mas (uma vez ultrapassada a infância) tal enriquecimento ocorrerá apenas se tomarmos consciência desta discrepância.
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Enquanto leitores, a maioria de nós, até certo ponto, é como aqueles moleques que desenham bigodes nos rostos das modelos fotografadas em anúncios.
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Um sinal de que um livro tem valor literário é que o mesmo aceita diversas leituras. Em contrapartida, a prova de que a pornografia não tem valor literário é que, se tentarmos uma leitura por um ângulo que não seja o de estímulo sexual, por exemplo, se tentarmos abordar o texto como veículo de liberação psicológica das fantasias sexuais do autor, chegaremos a bocejar de tanto tédio.
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Embora uma obra literária permita leituras diversas, o número de tais leituras é finito e pode ser organizado em ordem hierárquica; algumas leituras são obviamente mais “verdadeiras” que outras; algumas, duvidosas; algumas certamente falsas; e outras, como quem lê um romance de trás para frente, absurdas. É justamente por isso que, para uma ilha deserta, devemos levar um bom dicionário, em lugar da maior obra-prima literária que se possa imaginar, pois em relação ao leitor, o dicionário é totalmente passivo e pode legitimamente ser objeto de um número infinito de leituras possíveis.
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Não podemos ler um escritor principiante da mesma forma que lemos o último livro de um autor já consagrado. Com relação a um escritor principiante, nossa tendência é perceber apenas as qualidades ou os defeitos e, mesmo que possamos enxergar a ambos, somos incapazes de perceber as devidas inter-relações. No caso de um autor consagrado, se é que ainda conseguimos ler sua obra, sabemos que não é possível apreciar as qualidades que nele admiramos sem tolerar-lhe os defeitos deploráveis. Além disso, nosso julgamento sobre um escritor renomado nunca é meramente estético. A despeito de qualquer mérito literário, um novo livro de tal escritor possui para nós um valor histórico, tratando-se de obra de autoria de um indivíduo pelo qual há muito nos interessamos. Tal autor não é apenas um poeta ou um romancista; é também um personagem em nossa biografia.
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Um poeta não é capaz de ler a poesia de outro poeta, nem um romancista lê o trabalho de outro romancista, sem comparar a obra daquele com a sua. A avaliação que faz, à medida que lê a obra alheia, é expressada através de interjeições do tipo: “Meu Deus! Meu pai! Minha mãe!"
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Em literatura, a vulgaridade é preferível à nulidade, assim como o vinho do porto é preferível à água destilada.
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Bom gosto é mais uma questão de discriminação que de exclusão, e quando por razões de bom gosto somos levados a excluir, isso é feito com pesar, não com prazer.
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No processo de seleção do que se lê, o prazer não constitui absolutamente um valor crítico infalível; contudo, é menos falível.
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A leitura de uma criança é comandada pelo prazer, embora seu gosto não tenha capacidade discriminadora. A criança não consegue distinguir, por exemplo, entre o prazer estético e o prazer de aprender ou de sonhar acordada. Na adolescência damo-nos conta de que há diversos tipos de prazer, alguns dos quais não podem ser sentidos simultaneamente, e precisamos do auxílio de outras pessoas no processo de definição desses prazeres. No que tange a questões de gosto relativas à comida e à literatura, por exemplo, o adolescente busca um preceptor em cuja autoridade possa confiar. O jovem passa a comer ou a ler aquilo que o preceptor recomenda e inevitavelmente há ocasiões em que tem de enganar a si próprio; finge, por exemplo, que gosta de azeitonas ou de Guerra e Paz mais do que de fato gosta. Entre os 20 e os 40 anos vivemos o processo da descoberta do que somos, processo esse que envolve a percepção da diferença entre as limitações acidentais, as quais temos o dever de superar, e as limitações necessárias da nossa própria natureza, as quais não podemos superar impunemente. Poucos de nós chegam a tal percepção sem cometerem erros, sem tentar nos tornar mais universais do que nos é permissível. É exatamente durante esse período que um escritor pode facilmente ser desviado por outro escritor ou por alguma ideologia. Quando alguém na faixa dos 20 aos 40 anos diz com respeito a uma obra de arte: “Eu sei do que gosto”; está na verdade dizendo: “Não tenho um gosto pessoal mas aceito o gosto do meu meio cultural”; isto porque entre os 20 e os 40 anos a indicação mais precisa de que um indivíduo possui um gosto autêntico e pessoal é a própria incerteza a respeito do assunto. Após os 40 anos, caso não tenhamos perdido totalmente a autenticidade, o prazer pode voltar a funcionar como funcionava quando éramos crianças: como valor crítico que determina o que devemos ler.
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Embora o prazer que obtemos da apreciação de obras-de-arte não deva ser confundido com outros tipos de prazer, ele está relacionado com todos os tipos pelo simples fato de constituir um prazer nosso e não de outra pessoa. Todas as avaliações estéticas e morais que fazemos, não importa quanto nos empenhemos em ser objetivos, são por um lado uma racionalização e por outro uma ação disciplinar imposta sobre nossas aspirações subjetivas. Enquanto um indivíduo escreve poesia ou ficção, seu sonho do que constitui o Éden é assunto que somente diz respeito a si próprio mas, no momento em que o mesmo passa a escrever crítica literária, por questões de honestidade deve descrever seu Éden para os leitores, de maneira que os mesmos tenham condições de julgar as avaliações do crítico. Com efeito, passo a responder um questionário, por mim mesmo elaborado, que fornece as informações que eu mesmo gostaria de ter antes de ler o trabalho de outros críticos.
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2 comentários:

darknet⊕ disse...

bom txt

Anônimo disse...

Me senti de volta ao curso de Letras.