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O primogênito de Adão,
Submetido à prova
Por um deus infalível,
Fracassa,
E encontra na transgressão violenta
A sua desgraça.
A voz do sangue clama do solo:
O filho mais novo dos primeiros pecadores,
O pastor preferido dos céus,
Está morto.
Uma infelicidade sempre precede outra.
O erro dos pais perpetua-se com os filhos.
Uma capa escura é estendida sobre a narrativa
E novamente o reino da harmonia
Transforma-se num palco de desespero,
Rivalidades, tragédias e homicídio:
O amassador do barro antigo,
Exigente habitante das nuvens,
Deleita-se com histórias
De revoltas e expulsões do Paraíso?
Deus prefere os mais novos e os mais fracos
Como Jacó, José e Davi – assim está escrito –
Ele olha o coração dos que fazem oferendas
E não a materialidade do sacrifício.
Os justos são os que têm fé
E os que anunciam o Cristo,
Diferem de Eva e seu primeiro filho
Que atacou o pastor de fronte serena
Com uma clava e depois uma pedra,
Abatendo o irmão – e cordeiro inimigo.
Exilado a leste do Éden
O errante primeiro assassino
Recusa-se a aceitar seu torpe destino.
Resiste com bravura a toda sorte de infortúnios,
Ameaças e emboscadas,
Denuncia os sacrifícios sangrentos do irmão morto
E faz conhecer aos filhos
A origem de seu desatino:
Revoltara-se contra Deus, apaixonara-se pela mãe,
E fora condenado por seu amor e loucura desmedidos.
O fugitivo, filho da luz e do fogo,
Édipo, Lúcifer e Prometeu reunidos,
Opõe-se aos homens comuns, modelados no barro – e no lodo
Não é um animal feroz e covarde:
O mundo é um selva de luto tenebroso.
Vítima de uma armadilha, como o pai,
O pária torna-se enfim vitorioso:
Arranca o irmão dos braços da mãe,
E desafia com fúria o criador de todo esse pesadelo,
O sempre ardiloso e temível Todo-Poderoso!
Sua figura sobre-humana permanece.
Rompe séculos e séculos além:
Inspira escritores, pintores e escultores,
Artistas desde a Babilônia até Jerusalém.
O “pai das negras criaturas”, “o culpado”
Nunca fez da covardia uma virtude
E seus descendentes, os magníficos ferreiros,
Sonhando com o ruído de martelos celestes,
Inventam instrumentos musicais
Como o dulcíssimo alaúde.
É chegado o tempo da reabilitação do revoltado:
Recordemo-nos que o cordeiro pascal,
Sem amor sexual, pátria ou trabalho,
Ao contrário do descendente de Eva,
Tornou-se um Iluminado.
Ameaçado por uma força hostil, o pecado personificado,
Caim viu-se condenado à resistência e à vitória
E o frenesi sangrento de um assassino
Converte-se numa fonte de devaneios literários
E encontra uma estranha e sublime glória.
3 comentários:
Que bom que postou.
Posto, logo existo.
Não é assim, hoje?
Isso!
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