segunda-feira, 27 de julho de 2009

[Esboço para um conto.]

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“O empalhador”

Depois da morte da esposa, o Sr. Gallimard quase não saía de casa. A não ser por um motivo muito relevante. Médico aposentado, passava quase todo o tempo a empalhar animais, quase todos oriundos da mata que contornava parte de sua propriedade – um sítio próximo a Petrópolis. Ali, um galpão escuro e empoeirado servia de depósito para suas peças: aves, pássaros, símios e roedores. Os seus serviços eram contratados pelo zoológico do Rio de Janeiro e por alguns admiradores dessa arte esquecida. Sempre que perguntavam sobre por que preparava animais daquela maneira, ele respondia: “não posso ser condescendente com a putrefação”.
Gallimard era descendente de franceses, médico de família. Frequentava a nossa casa quando eu ainda era criança. Tornou-se um grande amigo do meu pai. Os dois passavam bons intervalos discutindo filosofia. Nunca havíamos trocado, porém, mais do que algumas palavras. Por isso, fiquei surpreso ao receber um telegrama remetido por ele. Estava muito doente e queria falar-me. O encontro aconteceu numa tarde de inverno. Ele cruzou por mim na entrada do hotel onde praticamente moro, na mesma Petrópolis. Quis alugar um quarto por dois dias. Mas não tinha como pagar – esperava um dinheiro para aquela tarde, a ser deixado no hotel. Tentei emprestar-lhe uma pequena quantia, mas ele recusou. Pediu para ficar no meu quarto até que a situação se resolvesse. Eu não tinha por que duvidar daquele senhor de chapéu e terno escuro e, além disso, sentia-me atraído pela sua companhia, por alguma razão que me remetia à infância. Ajudei-o com a bagagem e soube que ali estavam os instrumentos utilizados em seu novo ofício, forjados por ele.
Conversamos pouco sobre sua vida. Gallimard limitava-se a falar das peças que trouxera. “Ajudam a extirpar as vísceras dos animais e a preparar o bojo para o enchimento. Alguns cortam e furam como dardos, de tão afiados.” Perguntei se ele não tinha coragem de embalsamar um corpo humano e ele se calou. Disse que só entendia de peles e barrigas de animais. Que só praticava o empalhamento. “Embalsamar requer muita perícia, e eu sou apenas um velho de mãos trêmulas. Meus trabalhos são admirados apenas por pessoas sem o mínimo senso estético”, disse. O fato é que a minha pergunta o fez baixar a cabeça e respirar fundo. Parecia que aquele homem escondia algo. Algo que eu precisava saber. Convidei-o para beber um pouco no centro da cidade, como se eu fosse um detetive de um romance de Allan Poe. Ele aceitou de imediato e sugeriu que o lugar fosse calmo.
O uísque, em pouco tempo, conferiu-nos uma profundidade trágica, eu diria. Contei-lhe sobre a minha tentativa de suicídio. Ele falou da esposa falecida. Discretamente, choramos. Parecíamos possuídos por um sentimento comum, que nos corroía: o sentimento de culpa. A diferença é que tentei acabar com algo inútil, a minha própria vida. Ele acabou com a vida da esposa.
Sim, eu estava diante de um assassino. E isso tanto me fascinava quanto amedrontava. Ouvi, transtornado, o relato do crime que desafiou a polícia do Rio de Janeiro na década de 70. Gallimard foi absolvido por falta de provas.“Não há assassinato sem cadáver, filho”, disse, um tanto constrangido. E foi como se eu tivesse sido arremessado no Inferno quando ele passou a relatar os detalhes de seu repugnante ato. O leitor não vai acreditar, mas a esposa daquele velho que inspirava uma certa ternura havia sido estrangulada. “Mas por quê?” – perguntei, exaltado. “Ela odiava-me e planejava a minha morte. Além do mais, sempre quisera ser embalsamada. Acho que cumpri com o seu destino”, respondeu. “O corpo permanece intacto, depois de 38 anos, escondido numa espécie de sarcófago, no mesmo galpão onde estão os animais empalhados”, continuou. Gallimard fizera todo o trabalho sozinho. E o mais estranho vem agora: ele estava naquela cidade para embalsamar um outro corpo! Os instrumentos trazidos, pelo visto, não serviam apenas para dissecar bichos. Mas quem encomendaria semelhante serviço?
Aos calafrios, tive a revelação: “Sei que você deseja a morte e estou aqui para ajudá-lo quanto a isso. Posso preservar o seu invólucro por um tempo indefinido. O horror da putrefação não será experimentado pela sua carne, filho. E tenha isso como um presente de Deus, se você realmente acredita nele. Temos de ser rápidos, pois não sei quanto tempo de vida ainda tenho”, ele disse. Naquele momento, soltei um grito. E desmaiei ao saber quem estava por trás daquele plano tenebroso.

Nesta edição, Lutto T. Nebroso recebe a visita do velho Gallimard, médico aposentado e empalhador. Ele tem uma missão: matar e embalsamar nosso enfant terrible. Quem estaria por trás de semelhante plano? Não perca a continuação desse bizzarro conto.

“Medo, tremores, terror”

“Não posso negar o pedido de um amigo”, foram as últimas palavras que ouvi antes de cair. Acredite: o velho Gallimard estava na cidade para atender a um pedido do meu pai! Nem a mais fértil imaginação conceberia que de filho bem-amado eu passaria a cadáver embalsamado pelas mãos de um assassino! Não podia ser! Que estranhas forças obrigariam um pai a encomendar a morte de um filho?
Agora eu compreendia melhor por que o empalhador aparecera no hotel sem dinheiro. Ele queria forçar-me a aceitá-lo como visita. Ganhar a minha confiança para depois me golpear covardemente. Livrei-me por um tempo do ataque ao convidá-lo para tomar um uísque num lugar público. Mas, para meu azar, ali desmaiei. Isso facilitava a arquitetura do plano. Gallimard poderia ter me ferido durante o tempo que perdi os sentidos se quisesse. Mas esperou até que eu acordasse. Ainda atordoado, fui levado para o lugar onde seria objeto de suas lâminas - embora ele tenha dito aos fregueses do bar que me levaria ao hospital.
No galpão onde guardava os animais – na verdade, estátuas assustadoras – respirava-se um ar frio e pesado. Naquele lugar, só se podia ter medo, tremores ou terror. A imagem dos seres empalhados, principalmente a de um disforme gato preto, me fez pensar que eu estava submerso num pesadelo. Tentei, em vão, perguntar o que estávamos fazendo ali. “Não se preocupe, tudo acabará bem”, ele disse, antes de injetar, apressado e inquieto, alguma substância em meu corpo. Fiquei o tempo inteiro a equilibrar-me na tênue linha que separa o sono da vigília, numa espécie de delírio. Lembro-me de ter visto um anjo pendurado no teto daquele lugar. Com as asas ensanguentadas, ele dizia: “Três dias se passarão até que uma nova dimensão se abra diante dos seus olhos, filho. Foi assim com o filho de Javé no túmulo e assim há de ser contigo.”
Naquela época, meu pai participava de uma sociedade que misturava religião e filosofia. Estava debilitado mentalmente e quase sempre falava sozinho. Encarnava personagens bíblicos, fazia pregações na rua. Numa dessas ocasiões, afirmou que conhecia o ventre de um monstro marinho, onde passara alguns dias até ser libertado pelas mãos divinas. Inspirava pena, mas pouco eu podia fazer. Dizer insanidades em praça pública era, ironicamente, a sua única ligação com o que chamados de mundo real.
Meu pai adorava-me. A angústia de me ver sempre no limite das coisas, sempre sangrando para viver, entretanto, o afetou gravemente. A minha morte não passaria, assim, de uma punição contra ele próprio, ainda que inconsciente. A demência era tal que o impedia de compreender coisas elementares. Como o princípio universal que proíbe de matar. E assim, ele desejava ser obedecido em sua loucura. No fundo, a vítima a ser embalsamada não era outra senão ele mesmo. O mais incrível é que pudesse encontrar alguém a levar a cabo a sua mais horrenda idéia. Está claro que a diferença entre a loucura e a sanidade é que a primeira é muito mais comum.
Depois de uma queda vertiginosa dentro de mim, induzida pela quantidade de substâncias que me foram injetadas, eu só podia desejar que a minha morte fosse breve. Mas estou aqui para contar esta história. Como? Use toda a sua imaginação possível e ainda assim o que vem pela frente ainda lhe parecerá estranho.
A imagem do meu algoz passava diante de meus olhos, como num filme, quando ouvi o ranger dos portões. Uma luz de automóvel invadiu a penumbra do lugar no momento em que Gallimard se preparava para uma incisão em meu corpo. Entraram 7 homens, acompanhados de meu pai. Houve disparos de arma de fogo para o alto. “Solte o rapaz, deite-se com as mãos na cabeça!”. O embalsamador, porém, não obedeceu. Tentou escapar e foi atingido nas costas. Ao pressentir a morte, arrastou-se até o lugar onde estava o cadáver da esposa – e ali gritou o seu nome. Foi o grito mais lancinante que algum ser humano poderia emitir. Segundos depois, ele fazia companhia aos grotescos animais secos.
A minha libertação e a elucidação do crime renderam boas páginas no noticiário. Chamaram Gallimard de “O Médico Monstro” e a alcunha caiu no gosto popular. Soube também pela imprensa que, ao contrário do que eu pensava, meu pai não estava por trás daquele crime. A polícia tinha ido ao galpão para localizar o corpo morto da pobre vítima pelas informações dele, que guardou por décadas o bizarro segredo do amigo. Fora obrigado a revelá-lo para não ser acusado de cumplicidade e ser preso. Não há segredo que não possa ser contado um dia, agora eu sei. E se estou vivo é por essa combinação de acaso, sorte e, quem sabe, destino. Mas não pensem, sinceramente, que estou feliz por isso.
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6 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, eu adorei isso.

Laninha disse...

Q Poe o q... Lutto é o cara!

Lutto T. Nebroso disse...

Vocês beberam. So did I.

Anônimo disse...

Ah, larga de modéstia.

Lutto T. Nebroso disse...

É bom saber que tem gente assim acordada. Meus amores.

Laninha disse...

Salut, mon ami! Tim tim!